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segunda-feira, abril 09, 2007

Eles 

Há uma vontade mórbida em associar violência ao futebol. O Euro 2004 foi uma desilusão nesse aspecto. Quando houve os únicos desacatos de relevo no Algarve, foi com grande entusiasmo que as televisões relataram os acontecimentos.
Individualmente, a violência no futebol é uma extraordinária forma de definição da nossa própria identidade enquanto seres civilizados. 'Nós' e 'eles', os vândalos, temos em comum o gosto pelo futebol, mas enquanto 'nós' somos bem comportados e pacíficos, 'eles' são violentos, uns animais. O problema está na definição do 'eles'. Os fenómenos de violência no futebol são tão dispersos e diferenciados que é difícil estabelecer padrões comuns, complicando assim essa definição do 'outro'. Mas como tal é necessário, em vez de um, temos vários 'outros', de acordo com o prisma de análise. Se somos adeptos fanáticos e irracionais do Benfica, os adeptos do Porto são 'todos' uns vândalos. Se somos do Benfica, mas gostamos de nos ver como imparciais na nossa análise, então o problema é das claques, independentemente do clube. Quando levamos isto para um nível internacional, quando a Inglaterra ou uma equipa inglesa está envolvida, então a culpa é invariavelmente 'deles', pois foram 'eles' que trouxeram a violência para o futebol nos anos 1980. Adversário, claques e Inglaterra são assim os habituais bodes expiatórios. 'Nós', os civlizados somos simples vítimas destes vândalos que querem arruinar o futebol.
Um dos fenómenos mais curiosos do futebol mundial é que Inglaterra é dos países onde há menos violência no futebol, mesmo com níveis de segurança iguais ou inferiores a outros países. A segurança em Stamford Brdige por exemplo, é inferior à dos três grandes em Portugal. Pelo menos no Chelsea-Norwich para a Taça de Inglaterra a entrada para o estádio não incluiu nenhum tipo de revista de segurança, como é habitual em Portugal. Será que os ingleses só se portam mal fora de portas? Newcastle, Manchester United e Liverpool estiveram recentemente em Lisboa e não houve qualquer tipo de problemas, apesar da importância dos jogos em causa. A verdade é que os adeptos confraternizaram amigavelmente em todos estes jogos, sem que houvesse necessidade do recurso à violência. Nestes eventos há sempre obviamente excessos individuais, normalmente provocados pelo álcool. Em Sevilha foi essa uma das razões apontadas para a intervenção da polícia. Mas será que em Lisboa, os ingleses não beberam?
Tudo isto se resume ao tratamento dado aos adeptos. Ao distinguirmos entre 'nós' (pacíficos) e 'eles' (violentos) estamos a contribuir para a perpetuação de práticas diferenciadoras, como as verificadas no último Benfica-Porto. Será natural que um grupo de adeptos, comumente identificado como claque, seja encaminhado pela polícia, ao longo de vários kms ao interior do estádio? O processo de tratamento das claques é em tudo semelhante ao utilizado nas touradas em Portugal: fecham-se os touros ou as pessoas num transporte e este parte para o destino onde se vai realizar o espectáculo. Chegado ao destino, esperam que as práticas de segurança sejam postas em prática para se poder proceder à transferência desses animais/adeptos do transporte para o interior das instalações onde o espectáculo se vai realizar. Aí, são largados numa liberdade condicionada ou pelas trincheiras da praça (no caso dos touros) ou pelo enorme cordão policial de alta segurança (no caso das claques). Perante este tratamento será de esperar que estes adeptos tenham um comportamento civilizado, quando, desde o momento em que sairam de casa são tratados como seres irracionais e potencialmente violentos?
Um dos aspectos mais interessantes da discussão em torno do Benfica-Porto foi a forma como estes adeptos foram tratados. A lógica da polícia, por exemplo, era a de que o Benfica nunca devia ter colocado os adeptos naquele lugar porque já sabia o que ia acontecer. Esta inevitabilidade da violência é um aspecto extraordinário desta discussão. Nem por um momento se questionaram sobre a responsabilidade individual desses adeptos, muito menos sobre a forma como eram e são tratados por todos os intervenientes no futebol. A definção do 'outro' como actor colectivo em conjunto com o não questionamento das práticas de segurança que perpetuam esse outro e o definem como violento levaram aos actos de violência neste jogo, tal como em Roma ou Sevilha. Em qualquer outro contexto um adepto mais exaltado seria retirado do estádio. Naquele caso, a violência generalizada contra os adeptos ingleses foi a solução lógica encontrada. Não são 'eles' afinal todos iguais?
Casos pontuais de violência no futebol, como em todas as outras esferas da sociedade sempre existirão. Evitar o alastramento e a colectivização dessa violência passa pela alteração tanto das práticas de segurança como das atitudes e comportamentos para com grupos diferenciados de adeptos. Mas será isso do 'nosso' interesse?

Comments:
Ainda te vais tornar no Wallensteen dos estudos de paz e conflito no futebol internacional:)
 
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